Opinião
FLÁVIO D’URSO – Biticoin e lavagem de dinheiro: mitos e verdades
Novas tecnologias sempre apresentam novos desafios, especialmente para o Direito, mas será que a relação entre bitcoin e lavagem de dinheiro é tão direta como alguns querem fazer crer?
Para responder esta questão, é necessário retornar ao início desta verdadeira revolução, ocorrido em 31 de outubro de 2008, quando se deu o lançamento do white paper da rede Bitcoin, assim intitulado: “Bitcoin: A Peer-to-Peer Electronic Cash System”, elaborado pelo pseudônimo de Satoshi Nakamoto, mas que somente teve seu primeiro bloco minerado (Genesis Block) e sua primeira transação, em janeiro de 2009.
Naquele momento, o mundo vivia uma grave crise financeira e há quem afirme que o seu lançamento deu-se exatamente em resposta à bolha imobiliária nos EUA e ao sistema financeiro tradicional, uma vez que a Bitcoin é uma rede ponto a ponto (peer-to-peer network), ou seja, não precisa de intermediários confiáveis para se efetivar, e que evita o duplo gasto (double-spending), que nada mais é do que utilizar o mesmo bitcoin mais de uma vez.
O que se buscou com a rede Bitcoin foi um sistema de pagamento eletrônico que utiliza de criptografia, possibilitando a negociação entre duas partes, sem a necessidade de um terceiro para validar a operação.
Interessante notar que a ideia original exclui a atuação de terceiros nestas trocas de bitcoins, todavia, com o tempo e o uso, apresentou-se a possibilidade da existência de terceiros para facilitar as operações de compra e venda de bitcoins, que são as chamadas corretoras de criptomoedas (exchanges), tão comuns e conhecidas atualmente. Nelas é possível realizar compra, venda, troca e guarda de criptomoedas. Outro detalhe interessante, é que no white paper não consta a expressão blockchain, que passou a denominar, posteriormente, a cadeia de blocos da rede Bitcoin.
Uma das principais características da rede Bitcoin é a rastreabilidade das operações, uma vez que qualquer um pode acompanhar as trocas de um bitcoin, desde sua origem através da mineração, razão pela qual o “bitcoin virgem” (virgin bitcoin), que somente foi minerado e ainda não foi transacionado, acaba sendo mais valioso, dada sua “pureza”, por não haver a possibilidade de estar envolvido em ilícitos.
Críticas feitas ao bitcoin se pautam na ausência de lastro, todavia, registra-se, que as moedas fiduciárias (fiat) deixaram de possuir lastro há décadas, restando sua cotação baseada principalmente na confiança de seu emissor. É exatamente isto que ocorre com o bitcoin, uma vez que sua rede trabalha 24 horas por dia, 7 dias por semana, 365 dias por ano, há mais de 13 anos, sem que tenha havido qualquer incidente que possa colocar em descrédito seu funcionamento, isso aliado ao fato de sua finitude, ou seja, já está estabelecido o limite de 21 milhões de bitcoins, desde sua origem.
Todas essas informações demonstram a complexidade e a genialidade envolvida na rede Bitcoin, que tem sua criptomoeda como a mais conhecida e mais utilizada, fato que também faz com que seja a preferida para o cometimento de cibercrimes.
Acabam sendo frequentes e aumentam a desconfiança nesta criptomoeda – da qual nem mesmo a verdadeira identidade de seu criador é conhecida -, notícias que apresentam crimes que utilizaram o bitcoin como pagamento de resgate, (especialmente nos casos de criptografia e “sequestro” de informações), esquemas de pirâmide que prometem alta rentabilidade e ainda o próprio furto das criptomoedas, como já ocorrido em invasões a exchanges.
É neste cenário que se encontram as críticas ao bitcoin, que seria utilizado na lavagem de dinheiro, o que não se revela verdadeiro, uma vez que a lavagem de dinheiro pode ocorrer em três fases, a saber: colocação, ocultação e integração, tudo para dar uma aparência de licitude ao dinheiro “sujo”.
Esclarecendo melhor, as fases que constituem a lavagem englobam a ocultação, depois um esforço visando dificultar o rastreio do dinheiro “sujo” para, por fim, realizar a reinserção do dinheiro na economia, com aparência de ter sido obtido de forma lícita.
Além disso, há a necessidade de alguns requisitos objetivos, como, por exemplo, a ocorrência de um crime antecedente (não há mais o rol taxativo na lei), a ocultação (esconder/encobrir), além da dissimulação (disfarçar/mascarar/alterar a verdade), para que possa haver uma acusação de lavagem de dinheiro, desde que presente o dolo, ou seja, a intenção, livre e consciente, de realizar a lavagem do dinheiro.
Assim, a relação que se faz do bitcoin com a lavagem de dinheiro não pode ser precipitada, devendo haver uma análise profunda do caso concreto, antes de se concluir que se trata de crime de lavagem de dinheiro.
Existem muitas dificuldades para combater a lavagem de dinheiro através de criptomoedas, todavia, isso não pode levar ao retrocesso e à criminalização generalizada de um desenvolvimento tecnológico tão profundo, o qual só foi possível graças à Bitcoin.
Não se ignora que existem outras inúmeras formas conhecidas para lavar o dinheiro “sujo”, como pedras preciosas, ouro, obras de arte, papel moeda, etc., razão pela qual, não se deve, precipitadamente, combater o progresso da tecnologia, mas o seu uso indevido ou criminoso.
Portanto, apesar de existir muita dúvida com relação ao bitcoin, não se deve, por desconhecimento, criminalizá-lo, sob pena de ser desperdiçada uma importante ferramenta tecnológica, que pode ser utilizada, por exemplo, como proteção do patrimônio em países com altíssima inflação ou contra bloqueios em nações que se encontram sob regime ditatorial.
Flávio Filizzola D’Urso – Advogado Criminalista, Mestrando em Direito Penal pela USP, Pós-graduado em Direito Penal e Processo Penal pela Universidade de Coimbra (Portugal), com Especialização pela Universidade de Castilla-La Mancha (Espanha), integrou o Conselho Nacional de Segurança Pública e Defesa Social (2018) e foi Conselheiro Estadual da OAB/SP (gestão 2016-2018).
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