GABRIEL NOVIS NEVES

Vôo 'pinga-pinga'

· 2 minutos de leitura
Vôo 'pinga-pinga'

Escrevi certa vez sobre minha viagem ao Rio de Janeiro em 1953 a bordo de um DC-3. 

Decolei de Cuiabá às seis horas da manhã e só cheguei ao destino final às seis da tarde. 

Era um voo pinga-pinga: pousava em várias cidades para embarque, desembarque e reabastecimento. 

A aeronave desceu em Cáceres, Corumbá, Aquidauana, Campo Grande, Três Lagoas, Araçatuba, São Paulo e Rio de Janeiro. 

Em todas as paradas, os passageiros permaneciam a bordo, com exceção de Araçatuba, onde desembarcávamos para almoçar no restaurante do aeroporto.

Durante o trajeto as aeromoças — hoje chamadas comissárias de bordo — serviam salgadinhos, refrigerantes e até bebidas alcoólicas. Fumar era permitido. Um contraste curioso com os tempos atuais: nos modernos jatos comerciais, o percurso Cuiabá-Rio de Janeiro dura menos de três horas, as comissárias oferecem apenas água e biscoitos, e o fumo foi abolido. 

A Força Aérea Brasileira também utilizava esses aparelhos na rota de integração nacional, ligando cidades distantes do pais. 

Certa ocasião, consegui com o Brigadeiro Anísio Botelho, cuiabano, uma passagem para Cuiabá. Queria surpreender meus pais e descansaria alguns dias em casa. 

Partimos do Galeão ao amanhecer. Em Três Lagoas, o avião apresentou problemas técnicos e precisou realizar um pouso forçado. Os mecânicos concluíram que era necessário substituir uma peça do motor, vinda de São Paulo. Isso nos obrigou a pernoitar. 

Aos passageiros civis restavam hotéis e pensões; os militares seriam acolhidos nos quartéis. 

No meio da tensão notei um velho cuiabano pelo sotaque, embora não o conhecesse. Aproximei-me, apresentei-me e pedi-lhe dinheiro emprestado para o pernoite. Ele respondeu que tinha a quantia e que eu poderia devolvê-la em Cuiabá. 

Convidou-me a acompanhá-lo até o sanitário onde faria a entrega. Sentou-se na única cadeira, tirou o sapato e depois a meia. Ali estava o dinheiro que eu precisava, guardado com engenho e desconfiança. 

Escolado, sabia que no Rio abundavam assaltantes e aprendera a proteger seus bens de forma criativa. Nunca mais encontrei aquele meu salvador nem sequer guardei seu nome. Mas jamais esqueci sua lição de esperteza e solidariedade.

Gabriel Novis Neves é médico, ex-reitor da UFMT e ex-secretário de Estado