SANDRO BRANDÃO

Quando o irrelevante se torna urgente

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Quando o irrelevante se torna urgente

Algo importante se revela quando observamos, com um pouco de distância, aquilo que ocupa o centro do debate público em nosso tempo. Em meio a tantas possibilidades de reflexão, informação e diálogo, grande parte da atenção coletiva é consumida por temas efêmeros, controvérsias ruidosas e narrativas que se esgotam tão rapidamente quanto surgem.

Não porque esses assuntos sejam, em si, irrelevantes, mas porque sua insistente centralidade denuncia algo mais profundo que é uma dificuldade crescente de sustentar conversas maduras sobre aquilo que realmente exige responsabilidade, tempo e visão de futuro. Quando o essencial se torna exigente demais, o superficial ocupa o centro.

Os antigos já sabiam que a vida pública é um espelho da vida interior de uma sociedade. Para os gregos, uma cidade não se fragilizava apenas pela falta de leis ou recursos, mas pela perda da sabedoria prática, aquela que sustenta escolhas difíceis sem sucumbir ao imediatismo. Onde essa sabedoria se dissolve, o debate deixa de procurar sentido e passa a buscar estímulo. O ruído substitui a reflexão. A reação ocupa o lugar da construção.

Do ponto de vista espiritual, essa dinâmica também é conhecida. Algumas tradições ensinam que coletividades, assim como indivíduos, atravessam estágios de maturidade.

Há momentos em que a consciência prefere o espetáculo ao compromisso, a crença abstrata à responsabilidade concreta. Não por má-fé, mas por imaturidade do olhar. Uma sociedade pode ser profundamente religiosa e, ainda assim, ter dificuldade de transformar fé em confiança, espiritualidade em convivência e crença em projeto comum.

Toda sociedade vive dentro de um campo de atenção simbólica. Aquilo que ocupa esse campo molda prioridades, decisões e expectativas. Quando o espaço público é tomado majoritariamente pelo efêmero, não é porque o essencial desapareceu, mas porque ele exige tempo, silêncio, escuta e disposição para sustentar a complexidade, algo raro hoje em dia. O superficial não vence por força, vence por cansaço do essencial.

É nítido que o cérebro humano responde com mais facilidade ao estímulo imediato do que ao pensamento de longo prazo. Controvérsias simples, narrativas polarizadas e conflitos visíveis exigem menos energia cognitiva do que análises estruturais e decisões com consequências futuras.

Em contextos de instabilidade e desconfiança, a mente coletiva aprende a evitar o que exige esforço prolongado. O resultado é um debate acelerado, fragmentado e emocionalmente saturado, mas estrategicamente raso.

Nosso país expressa esse paradoxo de forma singular. Somos um dos povos com maior índice de fé declarada no mundo e, ao mesmo tempo, um dos que mais desconfiam uns dos outros.

Confiamos profundamente no invisível, mas suspeitamos do visível. Acreditamos na providência, mas hesitamos diante da construção coletiva. Essa dissociação cria um ambiente em que a esperança é elevada ao plano simbólico, enquanto o compromisso prático com projetos comuns permanece frágil.

Não se trata de condenar o entretenimento, a cultura popular ou o debate cotidiano. Eles fazem parte da vida social. O problema surge quando passam a ocupar quase todo o espaço de atenção, não por sua relevância intrínseca, mas porque funcionam como válvula de escape coletiva.

Permitem participação sem profundidade, engajamento sem compromisso e opinião sem consequência. Enquanto isso, temas estruturantes permanecem à margem, não por falta de importância, mas por exigirem maturidade.

Essa lógica impacta diretamente a forma como as sociedades se organizam. Quando o debate público se ancora no imediato, a gestão do tempo presente até pode funcionar bem, mas a construção do tempo futuro se fragiliza. A eficiência operacional se torna possível, mas, a visão estratégica, nem sempre. O curto prazo se estabiliza. O longo prazo se dilui.

Então nesse contexto, o planejamento deixa de ser reconhecido como inteligência e passa a ser confundido com demora, o que é um equívoco civilizatório recorrente. Em seu sentido mais elevado, planejar nunca significou esperar indefinidamente, mas escolher com antecedência aquilo que não pode mais ser adiado.

Trata-se de dar forma ao futuro antes que ele se imponha de maneira desordenada. Sociedades maduras não improvisam seus rumos, mas sim constroem-nos com método, visão e responsabilidade. É essa capacidade de articular escolhas, tempo e direção que transforma o planejamento em uma das expressões mais sofisticadas da inteligência coletiva.

O fim do ano costuma nos convidar a promessas e planejamentos. Mas talvez a pergunta mais importante não seja o que faremos no próximo ciclo. Talvez seja outra, mais exigente: que decisões estruturantes seguimos adiando — como indivíduos, organizações e sociedade — enquanto permanecemos ocupados em administrar o agora?

Talvez o desafio mais profundo do nosso tempo não seja produzir mais informação, mais opinião ou mais debate, mas qualificar aquilo que somos capazes de sustentar juntos. A maturidade de uma sociedade não se mede apenas pelo que ela acredita, mas pelo tipo de conversa que consegue manter sem se dispersar.

Onde o essencial exige esforço, o superficial oferece alívio. Mas nenhum futuro consistente se constrói apenas com alívio.

O tempo histórico não cobra pressa. Cobra consciência. Cobra a coragem serena de sustentar o que é complexo, mesmo quando isso não rende aplauso imediato.

Quando uma sociedade aprende a fazer isso, o espaço público deixa de ser palco de distrações recorrentes e passa a ser terreno de construção compartilhada. É nesse ponto — silencioso, exigente e profundamente humano — que o futuro começa, de fato, a ganhar forma.

Sandro Brandão é autor do livro “A Revolução da Conexão Humana” e atualmente é Secretário Adjunto de Planejamento e Governo Digital de Mato Grosso