GABRIEL NOVIS NEVES

O trem que nunca chegou

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O trem que nunca chegou

Meu pai nasceu no final do século XIX, e desde cedo temia a chegada do trem a Cuiabá.

Dizia que ele traria gente de todos os cantos, roubando o sossego da sua cidadezinha.

Temia os migrantes vindos de países com culturas muito diferentes da nossa.

Há mais de meio século acompanho o esforço de alguns, tentando estender os trilhos até Cuiabá.

Mas, há anos, eles pararam em Rondonópolis.

O governo justifica que Cuiabá é cidade consumidora, e não exportadora.

O cuiabano, no entanto, ainda deseja o seu trem.

Livros foram escritos narrando a sonhada chegada.

O trem já foi até enredo de escola de samba no Rio de Janeiro.

A prefeitura de Cuiabá investiu no carnaval, mas o trem não veio.

Hoje ninguém mais fala sobre isso.

Os trilhos seguiram para o nortão do Estado, abrindo caminho para as exportações.

Mato Grosso é campeão no envio de soja ao mundo, mas Cuiabá não produz esses grãos.

Nos cantos boêmios da cidade, entre um gole e outro, ainda se discute a chegada do trem — e, mais recentemente, do VLT.

Conversas distantes dos palácios e das universidades.

Para a juventude cuiabana, a lembrança de uma viagem de trem é quase um sonho herdado.

Um sonho feito de estações vivas na memória, do apito distante que corta o ar, dos vendedores ambulantes e das conversas nos vagões.

A ausência desse transporte por aqui me lembra as estações que a vida também deixa para trás.

Da janela de um vagão contemplei as paisagens rurais entre a Rússia e a Romênia, onde a terra é generosa e cultivada.

Vi escolas e bibliotecas ao longo do trajeto.

Ouvi línguas que não compreendia.

Falava com meu grupo, e eles, por sua vez, também desconheciam o assunto.

Percebi, então, que os trilhos não levam apenas mercadorias: fazem florescer cultura e desenvolvimento.

E que as conversas nos vagões têm um perfume de eternidade.

Ainda guardo, como relíquia, a lembrança dessa viagem sonhada, onde tudo era novidade e o trem era mais do que um transporte — era promessa de encontros e horizontes.

Gabriel Novis Neves é médico, ex-reitor da UFMT e ex-secretário de Estado