O que Jesus tem a ver com trabalho? Calma. Entre os muitos ensinamentos de Jesus, poucos são tão provocativos — e tão atuais — quanto a parábola dos talentos, narrada no Evangelho de Mateus (25.14–30).
Lida apressadamente, ela pode parecer um elogio ao mérito e à produtividade. Afinal, os servos que multiplicam os bens (os talentos) que receberam são elogiados, enquanto aquele que os enterra é duramente repreendido.
Mas, quando olhamos com mais cuidado, percebemos que a lição não está na quantidade produzida, e sim na atitude ética diante do que foi confiado. Jesus não valoriza quem tem mais — valoriza quem faz algo com o que recebeu.
Vivemos em uma sociedade que frequentemente mede o valor humano pela produtividade. O trabalho, que deveria ser um meio de realização e contribuição para o bem comum, transformou-se em uma espécie de altar moderno, no qual muitos sacrificam sua saúde, seu tempo e até sua identidade.
O filósofo sul-coreano Byung-Chul Han descreve essa realidade como uma “sociedade do desempenho”, na qual o indivíduo precisa provar constantemente seu valor através da produção incessante. Nesse cenário, o esgotamento físico e mental é quase uma virtude silenciosa, um sinal de que estamos “dando tudo de nós”. A produtividade tornou-se, um fim antropológico — produzimos, logo existimos.
Diante dessa lógica opressora, a parábola dos talentos oferece uma visão radicalmente diferente. Jesus propõe um critério ético libertador: o que importa não é quanto recebemos ou quanto produzimos (granjeamos,diria a antiga versão da ARC), mas como respondemos ao que nos é dado. Isso muda tudo!
O servo que recebeu dois talentos e os multiplicou é tratado com a mesma dignidade que o que recebeu cinco. O foco está na ação fiel, não na comparação. Trata-se de uma ética que subverte a velha ideia — presente já em Aristóteles — de que os talentos naturais, a origem social ou a posição hierárquica determinam o valor de uma pessoa.
Ao resgatar essa visão, somos convidados a rever, com sinceridade, nossa relação com o trabalho, com o outro e conosco. Talvez o ensinamento de Jesus não seja apenas espiritual ou religioso, mas também uma crítica social: nossa humanidade não se mede por desempenho, mas por responsabilidade ética àquilo que nos foi confiado.
Em grande parte do pensamento antigo — especialmente em Aristóteles — a virtude estava profundamente ligada à função social e à posição de nascimento. Ele acreditava que nem todos possuíam as mesmas capacidades morais e racionais, e que alguns nasceram para governar, enquanto outros, para servir.
Na prática, essa concepção sustentava uma espécie de hierarquia natural, em que o valor de uma pessoa se vinculava não ao que ela fazia, mas ao que ela era — e, sobretudo, ao lugar político e social que ocupava.
No “varejo do cotidiano”, isso se traduzia em uma sociedade onde prestígio, saber e autoridade eram, em grande medida, herdados. Filhos de pessoas consideradas “virtuosas” eram tidos como naturalmente superiores. O mérito, portanto, estava atrelado à origem e ao acesso exclusivo à educação e às oportunidades — e não propriamente à ação pessoal.
Essa lógica, ainda que disfarçada, persiste em parte até hoje, quando associamos “talento” à ideia de superioridade natural. A cultura do mérito, tão celebrada em nossos dias, costuma ignorar as desigualdades de partida e, ironicamente, reforçar os privilégios que afirma combater.
Ainda hoje, o senso comum conserva traços dessa antiga ideia. Dizemos que alguém é “talentoso” como sinônimo de alguém superior — alguém que se destaca dos demais. A própria cultura do mérito, que tanto enaltecemos, carrega em si a semente desse pensamento antigo: valorizamos, na maioria das vezes, quem já parte de lugares privilegiados, sem levar em conta as desigualdades de origem.
Jesus, ao contar a parábola dos talentos, confronta diretamente essa antiga lógica. Fala a pessoas que conhecem bem o peso de ter “mais” ou “menos” em um mundo desigual — e ensina que o critério divino não é a quantidade recebida, não é o “ponto departida”, mas o que se faz com o que se recebeu.
Essa mudança desloca o foco do status herdado para a responsabilidade ética de cada indivíduo — uma verdadeira revolução na maneira de pensar o valor humano. E essa inversão não é apenas religiosa: é também profundamente ética, social e antropológica.
Na visão de Jesus, no âmbito do trabalho, não deveríamos ser medidos, respeitados ou promovidos pela origem familiar, pelos bens que possuímos, nem muito menos pelo nível de produtividade. Na ética de Jesus, o valor de um trabalhador — e os “parabéns” que ele merece — está diretamente ligado, e sem comparações, ao que faz com aquilo que recebeu, do ponto de vista da responsabilidade ética.
Podemos ir até mais longe e dizer que ao desestabilizar a lógica aristotélica da hierarquia natural das virtudes, Jesus convida seus ouvintes — e a nós — a olharmos para o valor do ser humano não com base em sua origem, posição ou dom, mas a partir de sua responsabilidade e ação.
De certa forma o Evangelho rompe com a ideia de que alguns nasceram para produzir mais e outros menos. Jesus não mede nossa dignidade pelo tamanho da colheita, mas pela coragem de semear.
No fim, a parábola dos talentos não é sobre meritocracia, mas sobre responsabilidade. Não nos convida a competir, mas a responder. Cada um de nós, com mais ou menos recursos, é chamado a viver com integridade, generosidade e coragem. O que realmente conta, diante de Deus e da vida, não é o quanto acumulamos, mas o quanto nos envolvemos com aquilo que temos nas mãos.
Dr. Eduardo Leite – Historiador, Teólogo e Escritor
 
             
             
     
 
 
 
 
