Há pessoas que confundem o exercício de autoridade com um salvo-conduto para o autoritarismo. Ocupam cargos públicos, lideranças institucionais ou espaços de influência como se fossem donos da estrutura, e não seus servidores. Julgam-se a própria lei — ou pior, acima dela. São figuras que, sob o disfarce da eficiência ou da moralidade, exercem o poder com mão de ferro, alimentando um projeto pessoal e autocrático de dominação.
Governam pelo medo, pela chantagem e pela manipulação emocional. Sua liderança não se edifica no diálogo, mas no silenciamento. Não buscam justiça, mas submissão. São capazes de fingir empatia onde lhes convém, mas tornam-se cruéis, desumanas e vingativas diante de qualquer um que represente um obstáculo ao seu desejo de controle.
Esses sujeitos não toleram o contraditório. Para eles, divergência é sinônimo de traição. A crítica é considerada afronta pessoal. E quem ousa se levantar contra essa lógica doentia de poder logo se torna alvo de retaliações veladas, perseguições administrativas ou exclusões simbólicas.
A Lógica Narcísica do Poder
Trata-se, em muitos casos, de uma estrutura psíquica narcisista, como descreveu Sigmund Freud, em que o sujeito recusa qualquer realidade que o contrarie. O poder, então, torna-se espelho e escudo. Carl Jung advertia que “o poder é a mais perigosa dos devaneios das pessoas insanas e sedentas” — e, nessa loucura megalomaníaca, esses líderes se tornam dependentes da adulação, da obediência cega e da manutenção do mito de sua própria infalibilidade.
Cercam-se de bajuladores, alimentam bolhas de falsos aliados e, nesse processo, vão perdendo a capacidade de autocrítica. A prepotência toma o lugar da prudência. A arrogância, o da sabedoria. E assim, como já advertia Montesquieu, “todo homem que tem poder é tentado a abusar dele”.
O Desprezo pela História e pela Lei
Mesmo que pareçam inteligentes e meticulosos, essas figuras geralmente ignoram a história e subestimam as regras básicas da democracia. Desconhecem que toda estrutura de poder é frágil quando construída sobre o medo e a injustiça. Ignoram que o abuso de autoridade é punível e que a própria Constituição impõe limites claros à atuação de qualquer gestor público.
A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 37, determina que a administração pública deve obedecer aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência. Quando um gestor desrespeita esses princípios, utilizando seu cargo para perseguir, manipular ou silenciar, comete abuso de poder — ato passível de responsabilização cível, penal e administrativa.
Além disso, o art. 11 da Lei de Improbidade Administrativa (Lei nº 8.429/1992) considera ato de improbidade aquele que atenta contra os princípios da administração pública, notadamente os que violam a moralidade, a legalidade e os direitos fundamentais.
O Temor que vira ódio e rebelião
Por mais blindados que estejam, essas figuras acabam abrindo flancos. A arrogância gera descuido. A onipotência conduz à imprudência. A sede de controle revela a insegurança profunda que carregam — e que tentam compensar com a dominação do outro. Como já dizia Maquiavel, “não é possível manter o poder por muito tempo com o temor, pois o temor se transforma em ódio, e o ódio em revolta”.
A história nos oferece fartos exemplos. De Nero a Napoleão, de Hitler a ditadores modernos, todos os que confundiram poder com impunidade acabaram por sucumbir ao próprio veneno. A soberba precede a queda. E, como lembrava Hannah Arendt, “o poder não corrompe, ele revela”.
A Esperança na Resistência e na Justiça
Mas há sempre quem resista. Há quem denuncie, quem não se cale, quem mantenha a integridade mesmo diante da intimidação. É essa resistência que, ao longo da história, tem derrubado impérios autoritários e desmascarado farsas travestidas de liderança.
O poder verdadeiro não se impõe pelo medo, mas se constrói com justiça, escuta e compromisso ético. Quando alguém se julga acima da lei, desrespeita não apenas os outros — desrespeita o próprio Estado Democrático de Direito. E, nesse ponto, já não se trata apenas de um erro de gestão: trata-se de um risco à liberdade, à dignidade e à verdade.
Paulo Lemos é advogado especialista em Direito Público-administrativo e Eleitoral, criminalista, defensor de direitos humanos e educador popular