GABRIEL NOVIS NEVES

O mundo do inconsciente

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O mundo do inconsciente

Por alguns anos, no início da minha carreira médica, fui diretor do então chamado Hospital de Alienados de Cuiabá, popularmente conhecido como Chácara dos Loucos.

O hospital ficava afastado da cidade, quase escondido, no antigo primeiro distrito de Cuiabá, no Coxipó da Ponte, além do rio Coxipó.

Foi ali que aprendi a lidar com o inconsciente — e tentar compreendê-lo.

Adotava uma postura mais de ouvinte do que de interlocutor. Os internos eram, em sua maioria, pacientes crônicos, que viviam há anos na instituição.

O hospital era um verdadeiro depósito de doentes mentais, moradores de rua, mendigos, pessoas abandonadas por suas famílias e esquecidas pela sociedade.

Procurava entendê-los em seu próprio mundo e oferecer-lhes tudo o que estivesse ao meu alcance.

A visão predominante era de que essas pessoas deveriam ser mantidas em cativeiro e tratadas como crianças.

Fiz amizade com muitos deles e, até hoje, sinto saudade da criatividade que eles possuíam.

Entre tantos, recordo-me especialmente de um: Esperidião, um esquizofrênico crônico. Alto, forte e pele muito clara.

Foi levado ao hospital pela polícia. No prontuário, apenas um nome. Nenhuma referência a familiares ou alguém que pudesse acolhê-lo.

Dentro da instituição, tornou-se um auxiliar incansável. Ajudava na disciplina e no cuidado dos pacientes mais debilitados.

Organizava as festas juninas, as celebrações natalinas e o carnaval do hospital.

Era um homem religioso. Muitas vezes saia de madrugada, a pé, e caminhava até a Catedral Metropolitana para auxiliar o padre na missa das cinco.

Fazia até sermões, ainda vestido com o uniforme do hospital, o que causava espanto nos fiéis e inquietação no padre — que, assustado, costumava me telefonar.

Apesar de tudo, Esperidião era um homem dócil. Nunca precisou tomar um único comprimido.

Certa vez ele me pediu permissão para construir sua própria casa fora dos muros do hospital.

Mostrou-me o local escolhido: um pequeno espaço próximo ao portão, sempre vigiado por guardas.

Concordei. Meses depois, veio me chamar para ver o resultado.

Era uma obra-prima! Trabalho de um verdadeiro artesão especialista em ocupar pequenos espaços.

Tudo o que uma casa precisava, a de Espiridião tinha.

Convidei Aline Figueiredo, renomada crítica de arte, para visitar o local. Ela fotografou, conversou com o ‘arquiteto’ e ficou tão impressiona quanto eu.

A casa de Esperidião era mais do que um abrigo: era uma escultura, testemunho da força do inconsciente.

Deixei o hospital e nunca mais voltei lá. Não sei qual foi o destino daquela casa.

Mas sei que o inconsciente humano, quando estimulado da forma certa, pode produzir beleza.

Fui aluno da professora Nise da Silveira, criadora do Museu do Inconsciente.

Foi ela quem me ensinou que o caminho não era feito de fármacos ou eletrochoques, mas de desenhos, pinturas e esculturas.

A casa do Esperidião era a prova viva dessa lição.

Gabriel Novis Neves é médico e ex-reitor da UFMT