PANTANAL

MPF intensifica atuação contra empreendimentos que podem alterar o regime das águas

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MPF intensifica atuação contra empreendimentos que podem alterar o regime das águas
Hidrovias e hidrelétricas ameaçam o coração hídrico do Brasil e podem afetar comunidades tradicionais

O Pantanal é um território movido por água. Cada cheia e vazante redesenha sua paisagem, dita o ritmo da vida e sustenta a maior planície alagável do planeta. Mas o equilíbrio desse bioma, reconhecido como Patrimônio Nacional e da Humanidade, está cada vez mais ameaçado por projetos que tentam impor ao território barragens, portos e canais de navegação permanente.

Com a proximidade da 30ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas, a COP30, que será realizada em Belém (PA), o debate sobre os impactos das grandes obras de infraestrutura nos biomas brasileiros ganha nova relevância.

No centro dessa discussão, o Ministério Público Federal (MPF) vem atuando para evitar que hidrovias e hidrelétricas alterem irreversivelmente o regime hídrico do Pantanal, uma das maiores extensões úmidas contínuas do planeta e peça-chave no equilíbrio climático da América do Sul.

Um dos projetos que mais preocupam o MPF é o da Hidrovia Paraguai-Paraná, planejada para permitir a navegação contínua de comboios de minério de ferro e soja durante todo o ano no trecho brasileiro de Cáceres (MT) a Porto Murtinho (MS).

O empreendimento prevê intervenções agressivas, como dragagens, derrocamentos (remoção de rochas com explosivos) e retificação de trechos em mais de 50 pontos críticos do Rio Paraguai, em Mato Grosso e Mato Grosso do Sul.

Os afloramentos rochosos — chamados gargalos naturais — funcionam como reguladores: retardam o fluxo da água e permitem que a planície se comporte como uma “esponja”, armazenando e liberando a água gradualmente. Sua remoção, alertam os técnicos, pode antecipar as cheias e intensificar inundações em áreas a jusante, ou seja, rio abaixo, inclusive na Argentina. Essas ações, segundo especialistas e técnicos que assessoram o MPF, podem causar danos irreversíveis.

A avaliação foi feita durante evento promovido pelo MPF em junho, para debater os desafios de conservação do Pantanal, destacando o papel da intervenção humana e das mudanças climáticas na alteração de seu regime hidrológico crucial. Realizado na cidade de Campo Grande (MS), o seminário “Pantanal: Patrimônio, Desafios e Perspectivas” reuniu procuradores, lideranças tradicionais, pesquisadores, representantes da sociedade civil e de órgãos públicos.

A preocupação não é apenas ecológica. O MPF também tem chamado atenção para os impactos sociais e culturais. A dragagem ameaça comunidades ribeirinhas, pescadores profissionais e indígenas Guató, que dependem da pesca, da coleta de iscas e da sazonalidade das águas para sua subsistência.

“Podemos falar da Mata Atlântica, da Amazônia, da Caatinga ou do Pantanal, mas nenhum desses biomas existe de forma plena sem as comunidades que vivem e cuidam deles”, destacou o subprocurador-geral da República Aurélio Rios, integrante da Câmara de Meio Ambiente e Patrimônio Cultural do MPF.

A alteração do curso e da profundidade dos rios modifica o ciclo reprodutivo dos peixes e destrói os bancos de sedimentos que alimentam os ecossistemas aquáticos. Há ainda o risco de ressuspensão de metais tóxicos, como o mercúrio, já presente em alguns trechos do rio, devido à dragagem.

De acordo com a coordenadora técnico-científica do Instituto SOS Pantanal, Estefânia Oliveira, é fundamental considerar não apenas os impactos locais, mas compreender os rios do Pantanal como um sistema interligado.

“Quando uma variável é alterada, outras também sofrem modificações, é um efeito em cadeia. Intervenções pontuais, como uma dragagem em determinado trecho, podem provocar alterações significativas em outras partes do rio. Portanto, não estamos falando de um impacto isolado, e sim de múltiplos impactos distribuídos ao longo de diferentes setores da bacia”, alerta.

Hidrelétricas

Outro vetor de pressão sobre o Pantanal vem do avanço das hidrelétricas e Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCHs) na Bacia do Alto Paraguai. Já são 58 usinas instaladas, e os planos preveem mais de 100 empreendimentos para os próximos anos, sobretudo em rios ainda livres de barramento.

Essas estruturas fragmentam os cursos d’água, retêm sedimentos e reduzem a conectividade entre o planalto e a planície, o que altera os pulsos naturais de cheia e seca. O resultado é a redução das inundações periódicas que sustentam a vida no Pantanal e a perda de nutrientes que fertilizam os ecossistemas aquáticos.

A Hidrelétrica de Manso é um exemplo emblemático: sua operação modificou os picos de cheia e aumentou o nível mínimo dos rios durante a seca, alterando profundamente a dinâmica da bacia.

Segundo a pesquisadora da Embrapa e assessora na Procuradoria da República em Corumbá, Débora Calheiros, “essa alteração interfere profundamente na hidrologia do rio, afetando toda a biodiversidade e a produção pesqueira. A presença da barragem, por exemplo, impede a migração dos peixes, comprometendo o equilíbrio ecológico”, pontuou, com base em dados de estudos da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Essas construções, segundo o MPF, desrespeitam o Plano de Recursos Hídricos da Região Hidrográfica do Paraguai (PRH Paraguai), aprovado em 2018 pelo Conselho Nacional de Recursos Hídricos (CNRH) e elaborado com base em pesquisa coordenada pela Embrapa Pantanal, envolvendo 80 cientistas e um investimento público de R$ 12 milhões. O plano estabelece mapas de áreas de restrição de uso, determinando onde é proibido construir novas hidrelétricas, mas sua implementação segue paralisada por pressões políticas e econômicas