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Mata Cavalo, 30 anos depois: a resistência de um quilombo sempre ameaçado de destruição
João Negrão – Expresso 61 – O maior, melhor localizado e mais bem organizado quilombo de Mato Grosso continua resistindo há quase dois séculos às constantes ameaças de destruição. No passado eram os senhores de engenho de cana e fazendeiros de gado, numa região pantaneira e de transição entre o Cerrado e o Pantanal mato-grossense, em busca dos escravizados em meados do século XIX. Durante todo o século XX, as ameaças vinham de latifundiários e grileiros. Agora, no século XXI, somasse a todo o tipo de agressão histórica um “inimigo” novo que passou a morar ao lado.
Mata Cavalo fica no município de Nossa Senhora da Livramento, a cerca de 40 quilômetros de Cuiabá. Este município e seu vizinho Poconé somam a maioria dos mais de 80 remanescentes de quilombo existentes em Mato Grosso. Por estarem numa cidade muito próxima da capital do Estado e que compõe a chamada “Baixada Cuiabana”, as comunidades quilombolas são extremamente cobiçadas.
Eu tive o privilégio e a honra de ter sido o primeiro jornalista a reportar a situação do Quilombo Mata Cavalo, lá pelos idos de 1992, ou seja, quase 30 anos antes. Naquela época os quilombolas das seis comunidades dali eram constantemente despejados. Não foram poucos os que perderam suas terras, herdadas de seus ancestrais que resistiram bravamente à crueldade dos capitães-do-mato. Muitos morreram nessa luta.
Boa parte dos idosos já morreu e as crianças e adolescentes não moram mais no lugar. Só reencontrei dona Maria Valentina. No final desta reportagem eu publico dois vídeos sobre a foto. Numa, dona Berenice, liderança da comunidade Aguassu, me ajuda a identificar parte dos retratados. No outro, dona Valentina se reconhece. Antes de publica-los, eu resumo um pouco de triste história dela, uma mulher “exilada” em sua própria terra.
A série de reportagens que fiz 30 anos antes lançou os olhos da população mato-grossense e nacional (com a repercussão de afiliadas das redes de TV e dos grandes impressos do país) sobre Mata Cavalo para o bem e para o mal. Para bem porque a divulgação da luta dos quilombolas despertou a solidariedade dos setores sociais organizados, estimulou estudos acadêmicos e fortaleceu a organização política e social de Mata Cavalo. Para o mal porque a exposição positiva da comunidade quilombola reforçou a ira de seus tradicionais inimigos e fomentou a cobiça de outros atores que passaram a se interessar por aquela “terra de pretos”.
A visão escravocrata desses antigos e recentes atores sobre Mata Cavalo passou a fomentar ainda mais conflitos. Mas a resistência dos quilombolas avançava a cada passo que davam os agressores. Durante os governos Lula e Dilma e suas políticas de igualdade racial e de valorização das comunidades tradicionais, Mata Cavalo, como praticamente todos os remanescentes de quilombos em todo o país, avançou em sua organização social.
Lá, entretanto, assim como na maioria das comunidades quilombolas, ficou faltando a titulação de suas terras. Este é o principal e mais grave problemas que enfrenta Mata Cavalo. Nas seis comunidades – Mata Cavalo de Baixo, Mata Cavalo de Cima, Aguassu, Ponte da Estiva, Ribeirão da Mutuca e Capim Verde – a carência do documento estimula todo tipo de tentativa de roubar-lhes as terras. Volta e meia latifundiários e grileiros aparecem com documentação falsa, ordem judicial e jagunços para tentar desalojar os quilombolas.
“Invasão” de sem-terra
Nos últimos tempos, os invasores vêm lançando mão de outras artimanhas. Uma delas é instalar “capatazes” em áreas para em seguida reivindica-las posteriormente. Esses prepostos de fazendeiros e grileiros já roubaram grande parte dos territórios da seis comunidades. A outra tramóia é instalar famílias de trabalhadores rurais sem-terra dentro do quilombo.
Esta armadilha é feita com mais frequência por parlamentares e prefeitos (inclusive filiados a partidos de esquerda e de centro-esquerda) e lideranças rurais de Nossa Senhora do Livramento, de Poconé, de Várzea Grande (município “siamês” de Cuiabá) e outros da região. A desculpa é que as instalações dos sem-terra seriam provisórias, até que o Incra providenciasse outras áreas para o assentamento definitivo.
Ocorre que, assim como toda a política de regularização dos quilombos foi paralisada pelo governo Bolsonaro, a política agrária praticamente foi suspensa. O presidente Jair Bolsonaro não apenas deixa de assentar trabalhadores sem-terra, como os vem hostilizando com frequência. O ápice dessa conduta são os novos decretos sobre armas, que promove o armamento de fazendeiros com o claro propósito de combater sem-terra, quilombolas, indígenas e outras comunidades tradicionais.
Mortes à espreita
Como a luta dos sem-terra tem proximidade com a luta dos quilombolas, as lideranças de Mata Cavalo, como muita boa vontade, aceitaram o argumento dos políticos e lideranças de trabalhadores rurais e deixaram que as primeiras famílias se instalassem. Com o tempo, mesmo sem a autorização dos dirigentes quilombolas, foram chegando mais e mais posseiros. Esta situação vem persistindo e tornou-se uma ameaça real para as comunidades. De “amigos”, os sem-terra tornaram-se inimigos.
A outra ameaça para a integridade dos territórios quilombolas de Mata Cavalo e a vida de seus habitantes é a pandemia do coronavírus. Antes as comunidade viviam da produção de culturas como mandioca, cana, banana, milho e outras. O excedente era vendido na cidade. A pandemia tem dificultado esta atividade, assim como paralisou outras duas que geravam muita renda para as famílias: o turismo e a venda do artesanato.
Com tudo paralisado, a fome, a doença e a morte têm pairado sobre Mata Cavalo. Neste meu retorno de 30 depois, encontrei as comunidades melhor estruturadas, com melhores condições de trabalho, moradias de alvenaria (três décadas antes quase todas eram de adobe, pau a pique e telhados de palha) e estradas bem conservadas. No entanto, com aqueles velhos problemas se somando a novos.
A pandemia, por exemplo, me impediu de entrevistar pessoalmente em vídeo duas das seis lideranças das comunidades. Uma delas foi Ivone Conceição de Arruda Abreu, herdeira de duas das maiores lideranças de Mata Cavalo: sua mãe, Dona Tereza, e seu avô, Seo Antonio Mulato. São dois símbolos da resistência. Ela é presidente da Associação da Comunidade de Ponte da Estiva e me respondeu a uma entrevista por WhatsApp. O depoimento eu reproduzo abaixo.
As outras quatro lideranças com quem conversei os vídeos serão publicados na sequência. São elas: Arlete Pereira Leite, presidente da Associação da Comunidade de Mata Cavalo de Baixo; Laura Ferreira da Silva, diretora da Associação da Comunidade de Ribeirão da Mutuca; Nezinho, presidente da Associação da Comunidade de Mata Cavalo de Cima; e Berenice Leme do Espírito Santo, presidente da Associação da Comunidade de Aguassu.
Em mais três vídeos que publico logo após as entrevistas das lideranças, eu reporto um pouco do trabalho nas lavouras das comunidades de Ribeirão da Mutuca, num deles acompanhando a Laura, e de Aguassu, dois deles acompanhando o senhor José Nelson dos Santos, irmão de Berenice.
Confira o depoimento da Ivone:
“A situação de Mata Cavalo está complicada, principalmente nessa pandemia. A questão da regularização fundiária está parada. E estamos sofrendo ataques de alguns fazendeiros. Estamos passando por dificuldade financeira, pois com o isolamento não estamos podendo sair ou receber pessoas para vender nossos produtos. Esse governo racista não tem empenhando na questão da regularização fundiária, bem como na destinação de políticas públicas para nós, quilombolas.
Na comunidade de Ponte de Estiva moram 418 famílias. Vivem basicamente da agricultura familiar, produção de artesanatos. Tem pessoas que são aposentadas e também tem os que recebem benefícios do governo.
Minha mãe foi uma guerreira na luta pela regularização fundiária e também pela educação. Seus últimos 15 anos de vida foram dedicados na luta pelo reconhecimento e regularização do quilombo e pelo fortalecimento e resgate da cultura quilombola. Meu avô faleceu com 113 anos, no quilombo. É símbolo de resistência e nos deixou muitos ensinamentos. Implantou a primeira escola quilombola no quilombo, na década de 1940. Morreu sem ver o quilombo, seu lugar de origem, regularizado.
A relação entre as comunidades é saudável e constante. Pois sempre temos que nos reunir pela causa quilombola. Lógico que existem algumas divergências, mas a luta pelo quilombo supera nossas divergências.
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