Não se pode esperar por qualquer sentido evolutivo sem que haja uma associação entre os humanos. O mecanismo do desenvolvimento humanitário perpassa pelo sentimento de solidariedade. O individualismo já foi vencido pelo pragmatismo filosófico, que entendeu o espírito da convivência baseada na alteridade, na crescente preocupação com o outro.
A condição humana, aperfeiçoada pela moral religiosa e da ciência, distingue uma anterior natureza, inflexível e distante, de uma nova ordem orgânica social – a generosidade crescente e a convivência entre iguais, sem distinção de qualquer tipo. A distopia possível é criação de mente perversa, teimosia do estado de natureza, sem condicionantes.
O pensador Giambattista Vico (1668-1774) já afirmava que existem princípios de história do mundo. Assim, há um padrão no passado humano que não é contingente, mas necessário (Coleção Logos, Vico O Precursor). E isso se desdobra na noção de “mito”, largamente utilizada por Vico na dedução da cultura e do pensamento de longínquas épocas.
A ideia de deuses interagindo com os humanos assinala o início das narrativas orais e tradições em que o mito é figura central. Os poetas vieram após, num segundo momento, consagrando a idade dos heróis. Vê-se que a sabedoria dos antigos era mítica e poética, diferentemente de quando os filósofos entraram em cena com as suas reflexões, sobre inicialmente o ambiente e, posteriormente, tendo o homem como seu objeto central.
Na sequência histórica da vida, em que o padrão é uma necessidade, tem-se a degeneração dos mitos, ganhando a humanidade uma certa maturidade racional, e o pensamento crítico passou a ser a panaceia contra a simploriedade.
Os mitos passam a sofrer a inferência de novos métodos de interpretação da realidade, e Vico estabelece um: reduzir deuses e heróis gregos e romanos a símbolos de classe das sociedades que representavam em dados períodos da história. Com isso, esse notável pensador cria um momento simbólico de análise da interação entre indivíduos e classes.
E essa contingência de heróis e mitos, ainda hoje, dá margem a uma tendência das pessoas em se sentirem protegidas, amparadas, podendo se expressar igualmente o mito ou herói, com um significado de liberdade de algo que lhes tolhiam (antes da ascensão do herói) o movimento ou a expressão em direção a seus preconceitos e discriminações.
Tal fenômeno revela uma constante da experiência humana: a necessidade de símbolos que legitimem afetos, impulsos e projetos coletivos. Os heróis contemporâneos, sejam eles reais ou fabricados, emergem como encarnações de desejos reprimidos ou de identidades sociais em busca de afirmação. Por vezes, oferecem uma falsa sensação de segurança; noutras, funcionam como catalisadores de movimentos emancipatórios.
No entanto, o risco da permanência acrítica desses mitos é o retorno, disfarçado ou não, à barbárie dos particularismos. Quando o herói é alçado ao status de intocável, quando a narrativa se fecha sobre si mesma e se blinda contra o pensamento, corre-se o perigo de reinstaurar um tipo de idolatria incompatível com a razão pública e com o ideal de convivência solidária da modernidade.
O projeto humanitário moderno exige o abandono das muletas ideológicas que servem apenas para justificar exclusões. O heroísmo verdadeiro — se existe — não está na força que domina, mas na escuta que acolhe; não na imposição de uma verdade única, mas na aceitação radical da pluralidade humana.
A filosofia, desde Vico até os pensadores contemporâneos, permanece como um instrumento indispensável nesse esforço de decifração e reconstrução. Pois não há progresso moral sem consciência histórica. Não há convivência sem alteridade reconhecida.
Nesse percurso, o sentido evolutivo da vida não será dado por alguma força externa ou determinismo cego. Ele será construído — dia após dia, gesto após gesto — na arena comum da solidariedade concreta.
É por aí...
Gonçalo Antunes de Barros Neto (Saíto) é da Academia Mato-Grossense de Letras (Cadeira 7), da Academia Mato-Grossense de Direito (Cadeira 30), da Academia Mato-Grossense de Magistrados (Cadeira 19) e do Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso – IHGMT