Há um ponto em que o prazer deixa de ser liberdade e passa a ser fuga.
O chemsex — o uso de substâncias psicoativas para intensificar e prolongar relações sexuais — muitas vezes nasce como curiosidade, como tentativa de libertação ou como resposta a uma dor antiga.
Mas, quando o prazer depende da droga para acontecer, o corpo começa a avisar: “isso já não é mais prazer, é sobrevivência química.”
Como temos explorado nesta série, esse é o ponto em que o sujeito entra no que chamamos de pré-colapso emocional — a fase em que o abuso começa a se transformar em dependência, mas ainda há tempo de escutar o corpo e voltar.
Durante o chemsex, o cérebro é inundado por uma explosão de dopamina, neurotransmissor do prazer e da recompensa.
O toque se intensifica, o tempo se dilata, o corpo parece ilimitado. Mas a dopamina é também traiçoeira: quanto mais ela é produzida artificialmente, mais o cérebro reduz seus receptores naturais, e o prazer passa a depender da substância.
A serotonina, que regula o humor e o afeto, despenca; a noradrenalina, responsável pela energia e atenção, se esgota.
O corpo entra em um ciclo de euforia e vazio, prazer e culpa.
A substância, que no início parecia ampliar o mundo, acaba se tornando o muro entre o sujeito e o próprio desejo.
A masculinidade tóxica não é exclusiva do homem heterossexual.
Ela atravessa o homem gay, o bissexual, o homem trans, o pansexual, o queer — todas as masculinidades LGBTQIAPN+ — e cria uma hierarquia de poder entre elas.
Aqui nasce o que a psicologia e os estudos de gênero chamam de masculinidades subordinada, cúmplice e marginalizada.
A masculinidade subordinada é aquela que ocupa o lugar mais oprimido na hierarquia: o homem que é visto como “menos homem” porque expressa sensibilidade, afeto, vulnerabilidade ou desejo por outro homem.
É o corpo que desafia o modelo da virilidade e, por isso, é rebaixado e ridicularizado.
O homem gay, o homem trans e o queer costumam ser lançados nesse lugar, vivendo o conflito entre o que são e o que o mundo diz que deveriam ser.
A masculinidade cúmplice, por sua vez, é a mais complexa — e aqui entra o homem bissexual.
Ele habita dois mundos, mas raramente se sente inteiro em algum. Muitas vezes, performa a heterossexualidade para ser aceito em determinados contextos, escondendo o desejo pelo mesmo sexo.
Outras vezes, se assume no meio LGBTQIAPN+, mas disfarça seus vínculos heterossexuais para evitar o julgamento.
A cumplicidade é a tentativa de sobreviver dentro da hierarquia, mantendo o privilégio de parecer “normal”.
Mas esse disfarce cobra um preço: a fragmentação emocional. O sujeito se divide entre o que é e o que precisa representar — e a substância química aparece como a ponte artificial entre esses dois mundos.
Já a masculinidade marginalizada é a que se soma à exclusão social — quando raça, classe e território atravessam o corpo masculino e o tornam ainda mais distante da norma.
O homem negro, periférico ou empobrecido, mesmo que heterossexual, também sofre o peso dessa estrutura.
No contexto da dependência química, essa masculinidade marginalizada é a mais vulnerável às políticas punitivas e ao estigma, sendo mais punida do que tratada.
Essas três formas se entrelaçam e revelam o mesmo mecanismo: o homem que tenta existir fora do modelo dominante acaba usando o corpo como defesa e a droga como anestesia.
O prazer se torna performance, e o silêncio vira sobrevivência.
O mais cruel é que o preconceito não vem apenas de fora.
Ele se internaliza.
O sujeito passa a sentir vergonha de si mesmo.
O primeiro preconceito que ele precisa enfrentar não é o do outro — é o próprio.
É a rejeição interiorizada, a crença de que sentir é errado, que amar é perigo, que desejar é fraqueza.
E é nesse ponto que a dependência química encontra terreno fértil: a droga funciona como desligamento temporário da dor de existir.
Enquanto o efeito dura, o sujeito não precisa se explicar, nem se aceitar. Mas, quando o efeito passa, volta a voz interna que o acusa — e com ela, o ciclo recomeça.
No Instituto Mentes Plurais, chamamos esse ponto de pré-colapso emocional — um momento clínico e simbólico que descreve o início do esgotamento do sistema de prazer e do controle emocional.
Cientificamente, esse estágio corresponde ao que a neurociência denomina estágio de vulnerabilidade neuropsicológica: o ponto em que o sistema de recompensa cerebral entra em sobrecarga, mas ainda não atingiu o colapso total da dependência.
O sujeito já demonstra sinais de desorganização emocional e fisiológica, mas ainda possui energia psíquica suficiente para buscar ajuda e reorganizar sua vida.
A psicoterapia é o espaço onde o sujeito pode se reconhecer sem medo e se reconstruir sem culpa.
É onde o corpo volta a ser lugar de verdade e o prazer deixa de ser anestesia para voltar a ser presença.
Nós, do Instituto Mentes Plurais, desenvolvemos um trabalho voltado à reabilitação emocional e psicológica em casos de dependência química, com foco especial nas masculinidades, sexualidades e atravessamentos sociais.
Nos debruçamos sobre como gênero, raça, classe e desejo se entrelaçam na formação da dor psíquica e na tentativa de fugir dela.
Assim como muitos psicólogos comprometidos com uma clínica ética e interseccional, acreditamos que cuidar do sujeito é cuidar da sua história e da forma como ele aprendeu a existir.
Sair do chemsex não é apenas deixar a substância.
É reconciliar-se com o próprio corpo e com o próprio desejo.
É derrubar o preconceito que foi internalizado, aceitar-se e recomeçar.
É reconstruir vínculos reais, buscar novas redes, mover o corpo, cuidar da mente e redescobrir o prazer natural.
A atividade física, o descanso e o cuidado emocional devolvem dopamina e serotonina naturais — devolvem humanidade.
Nailton Reis é Neuropsicólogo Clínico com especialização em Neuropsicologia Cognitiva Comportamental, Avaliação Psicológica e Psicologia do Trânsito em Cuiabá-MT. CRP 18/7767