Há momentos históricos em que a Justiça deixa de ser chamada apenas a resolver conflitos e passa a ser convocada a reafirmar a própria ordem. Nessas ocasiões, o julgamento não carrega apenas autos e provas, mas símbolos, medos e expectativas coletivas.
O 8 de janeiro de 2023 se insere nesse contexto. Os ataques às instituições brasileiras não foram simples atos de depredação do patrimônio público; representaram uma afronta direta à ordem constitucional e à ideia de Estado Democrático de Direito.
Esse ponto é indiscutível. A reflexão necessária recai sobre como o sistema de justiça reage quando a comoção social se converte em pressão por punições exemplares.
A história oferece alertas claros. Durante a Revolução Francesa, em nome da defesa da República nascente, o terror foi institucionalizado. Tribunais revolucionários passaram a decidir com rapidez, severidade e forte carga simbólica.
Muitos julgamentos atendiam menos à análise individual das condutas e mais à necessidade política de afirmar autoridade. O resultado foi conhecido: a exceção tornou-se regra, e a justiça cedeu espaço ao medo.
No século XX, o cenário se repetiu em diferentes contextos pós-guerra. Em diversos países, tribunais de exceção foram criados para responder a traumas coletivos profundos. Ainda que motivados por razões compreensíveis, muitos desses julgamentos acabaram por relativizar garantias fundamentais, sob o argumento de que o momento histórico não comportava a normalidade do Direito.
O tempo, contudo, mostrou que decisões tomadas sob forte emoção raramente resistem ao crivo histórico.
O Direito Penal moderno nasce justamente como reação a esses excessos. Ele não existe para satisfazer o clamor social, mas para conter o poder punitivo do Estado.
A pena não pode ser resposta emocional nem instrumento de pedagogia pelo medo. Como advertia Cesare Beccaria, punições desproporcionais não fortalecem a ordem; corroem sua legitimidade e alimentam novos ciclos de ruptura.
É nesse ponto que a dosimetria da pena assume centralidade. Longe de ser mero detalhe técnico, ela é o momento em que o Estado revela se está julgando fatos concretos ou respondendo a uma narrativa coletiva.
O sistema trifásico adotado pelo Código Penal brasileiro exige análise individual da culpabilidade, dos antecedentes, da conduta social, da personalidade do agente, dos motivos e das circunstâncias do crime. A Constituição Federal consagra a individualização da pena como garantia fundamental justamente para evitar julgamentos massificados em tempos de crise.
Os condenados pelos atos de 8 de janeiro não formam um grupo homogêneo. Há organizadores, financiadores, lideranças e executores diretos de atos violentos. Há também participantes ocasionais, sem capacidade real de comando ou compreensão plena do alcance jurídico de suas condutas.
O Direito Penal não pode tratar desiguais como iguais sem repetir erros históricos já conhecidos. Quando isso ocorre, abandona-se a técnica em favor do símbolo.
A experiência dos tribunais de exceção demonstra que o maior risco surge quando o Estado passa a enxergar determinados acusados como inimigos a serem neutralizados, e não como cidadãos submetidos à lei. Nesse cenário, a pena deixa de responder ao fato e passa a responder à necessidade de reafirmação institucional. A exceção, que deveria ser episódica, transforma-se em método.
A culpabilidade sempre foi concebida como limite da pena. A gravidade do episódio não autoriza, por si só, a elevação desmedida das sanções se a contribuição individual foi periférica. Essa não é uma discussão ideológica, mas um princípio construído historicamente para impedir que o Direito Penal seja capturado pela emoção coletiva.
A jurisprudência dos tribunais superiores brasileiros, em linha com essa tradição garantista, exige fundamentação concreta na dosimetria da pena. Majorações baseadas apenas na gravidade abstrata do delito, na repercussão social ou na comoção coletiva não atendem ao padrão constitucional de motivação das decisões judiciais. A pena precisa ser explicada, delimitada e proporcional. Sem isso, perde legitimidade.
Outro ponto sensível está no uso cumulativo de tipos penais e agravantes sem clara autonomia fática. O concurso de crimes não pode servir como mecanismo automático de maximização punitiva.
Cada imputação deve corresponder a um comportamento específico, comprovado e juridicamente delimitado. Punir reiteradamente o mesmo fato sob múltiplas classificações é distorcer o sistema e repetir práticas típicas de momentos excepcionais da história.
Nada disso significa negar a gravidade do 8 de janeiro ou defender impunidade. Significa reconhecer que a democracia não se fortalece quando flexibiliza suas próprias garantias em nome da urgência. A história demonstra que Estados que abrem mão da técnica em momentos de crise costumam pagar esse preço mais adiante.
Punir é necessário. Punir com técnica é indispensável.
Uma democracia se protege quando reage aos ataques que sofre, mas se consolida quando demonstra que, mesmo diante da comoção social, não abandona o Direito que a sustenta. Quando o peso da pena supera a medida da técnica, o risco não recai apenas sobre os condenados, mas sobre o próprio Estado de Direito.
Victor Carvalho - Advogado – OAB/MT. Especialista em Direito Digital e Direito Processual Civil, com atuação nas áreas do Direito Constitucional e do Direito Internacional, com ênfase na tutela dos Direitos Fundamentais e dos Direitos Humanos