NAILTON REIS

Entre o abuso e a queda: quando o corpo avisa antes de colapsar

· 4 minutos de leitura
Entre o abuso e a queda: quando o corpo avisa antes de colapsar

Existe um ponto da trajetória do uso em que o corpo ainda fala.
Ele ainda trabalha, ainda ri, ainda finge que está bem, mas por dentro já há um incêndio químico em curso.

É o momento em que a dopamina, a serotonina e a noradrenalina já não se equilibram, em que o prazer, a energia e o afeto começam a entrar em pane.

O sujeito ainda acredita que tem controle, mas o corpo já está avisando: ou você para, ou vai colapsar.

O rompimento dos vínculos e o início do vazio

Tudo começa quando as relações afetivas, as mais humanas e estabilizadoras, se rompem.

A parceira se afasta, os amigos perdem paciência, a família se cansa.

O que era um espaço de pertencimento vira silêncio.

A serotonina, neurotransmissor que regula o humor e o sentimento de segurança emocional, cai.

O sujeito, que antes se sentia parte de algo, passa a sentir o peso da exclusão.
Mas a masculinidade não permite dizer “estou só”.

Então ele transforma o vazio em performance: “eu aguento, eu não preciso de ninguém”

E o álcool, a cocaína, o sexo, a noite, o risco, tudo isso passa a ocupar o lugar da falta.

A mente em sobrecarga: dopamina fora de controle

A cada uso, a dopamina é liberada como uma faísca intensa de prazer e motivação.
Mas com o tempo, o cérebro entra em modo de defesa, ele se acostuma ao excesso e começa a desligar receptores.

Para sentir o mesmo prazer, o sujeito precisa de mais substância, mais dose, mais intensidade.

É o auge do abuso e o início do descontrole.

O prazer agora é curto, ansioso, violento.

E quando ele passa, vem a queda abrupta: apatia, irritação e uma necessidade desesperada de repetir o uso.

Esse é o ponto em que a dopamina deixa de ser aliada.

O mesmo sistema que antes sustentava a vitalidade agora cobra seu preço.

O cérebro perdeu a referência do prazer natural e o corpo, sem dopamina suficiente, entra em desânimo profundo.

O cansaço invisível: noradrenalina em queda

O que antes era euforia vira esgotamento.

A noradrenalina, responsável pela energia, pelo foco e pela reação, começa a despencar.

O sujeito acorda cansado, sente o corpo pesado, perde o desejo de viver.

Mas por fora, ainda sorri. Ainda diz “tô bem”. Ainda sai à noite.

O corpo, porém, já está sem combustível.

O uso passa a ser uma tentativa de “ligar o motor”, de forçar o sistema a funcionar à base de química.

E cada vez que faz isso, a reserva natural de energia é consumida.

O pré-colapso é essa contradição:

um corpo que ainda se move, mas já não se sustenta.

Um homem que ainda se impõe, mas já não sente.

Um cérebro que ainda produz descargas, mas não sente prazer.

O último aviso: o corpo pede socorro

Nesse ponto, a fisiologia e o afeto se misturam.

O corpo não aguenta mais e a mente começa a se desorganizar.

A sensibilidade emocional explode: choro, raiva, impulsividade, isolamento.

Mas o sujeito interpreta tudo isso como fraqueza, não como sintoma. E é aqui que o peso histórico da masculinidade entra em cena. Desde cedo, ele aprendeu que “homem de verdade não chora, não desiste, não fraqueja”.

Essa ideia, plantada na infância e regada pelo medo da rejeição, vira veneno quando o corpo pede ajuda.

Ele não se permite adoecer porque aprendeu que fraqueza é pecado. E assim, o homem que mais precisa de socorro se esconde atrás da máscara da força, fingindo controle enquanto desaba por dentro.

A masculinidade tóxica não apenas silencia, ela mata devagar, um silêncio de cada vez.

O “homem de verdade” já está na trajetória do caminho para o abismo. E para sustentar a performance de homem, ele continua seguindo em silêncio.

Para sustentar o lugar de homem de verdade, ele continua seguindo em frente,
vestido com a armadura da hipermasculinidade.

A psicologia chama esse momento de pré-colapso, a fronteira entre o uso abusivo e a dependência.

É a fase mais difícil, mas também a mais promissora, porque ainda há energia suficiente para agir.

Rede de apoio: o corpo social que salva o corpo biológico

A recuperação começa quando o sujeito entende que precisa de rede.
Rede não é fraqueza, é estrutura.

No Brasil, os CAPS AD (Centros de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas) existem justamente para esse momento: quando o corpo avisa e a mente ainda quer ajuda.

Lá, o atendimento é multidisciplinar: psicólogos, psiquiatras, enfermeiros e assistentes sociais constroem o cuidado junto com o sujeito.

Mas a rede de apoio vai além das instituições: ela também se constrói nas relações que reaproximam o sujeito da vida.

É o amigo que escuta sem julgar, a família que volta a acreditar, o grupo saudável que acolhe sem exigir performance.

São esses vínculos que ajudam o corpo a recuperar o prazer natural, o prazer do encontro, da conversa, da presença.

O cérebro reaprende a liberar serotonina quando há afeto, dopamina quando há conquista real e noradrenalina quando há movimento. E o movimento pode começar com o próprio corpo.

Psicologia e cuidado emocional: o recomeço possível

O trabalho psicológico é o espaço onde o silêncio ganha voz.

É ali que o sujeito aprende a reconhecer a dor não como fraqueza, mas como linguagem do corpo.

A psicologia ajuda a reconstruir vínculos, a compreender os gatilhos emocionais, a reformular crenças e a reeducar o prazer. Ela permite que o homem entenda que ser forte é sentir e pedir ajuda.

Que ser humano é se permitir cuidar, e que a saúde mental é tão vital quanto a física.

Nós, do Instituto Mentes Plurais, desenvolvemos um trabalho voltado à reabilitação emocional e psicológica de sujeitos em sofrimento, com ênfase nas questões de dependência química, masculinidades e saúde mental.

Nos debruçamos sobre esses temas e pesquisamos continuamente para compreender as dores que atravessam o homem contemporâneo.

Assim como muitos psicólogos comprometidos com uma prática ética e sensível, buscamos olhar para o sujeito considerando as dimensões de gênero, raça, sexualidade e classe social, compreendendo que o sofrimento humano é atravessado por essas realidades.

Falar de dependência é, portanto, falar de humanidade e reconhecer que todo cuidado começa quando alguém se dispõe a escutar.

Essa série de artigos nasce desse compromisso: propagar conhecimento, oferecer reflexão e apoiar o sujeito em seu processo de saída do ciclo da dependência, ajudando-o a reconstruir uma vida emocional, social e mentalmente saudável.

O colapso é o fim da fuga. Mas o pré-colapso é o último aviso, e também o primeiro passo de volta.

Nailton Reis é Neuropsicólogo Clínico com especialização em Neuropsicologia Cognitiva Comportamental, Avaliação Psicológica e Psicologia do Trânsito em Cuiabá-MT