PAULO LEMOS

Enquanto alguém passa fome, nenhum de nós está realmente bem

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Enquanto alguém passa fome, nenhum de nós está realmente bem

Tá, agora imagina: madrugada, você acorda com o estômago roncando alto. Não é ansiedade, não é aquele pensamento aleatório das três da manhã. É só... fome. E não tem nada pra beliscar. Nem um pãozinho esquecido, nem leite, nem fruta, nem arroz, nem miojo perdido no armário. Só o vácuo da barriga vazia e aquela esperança besta de conseguir dormir pra ver se esquece.

E olha que pra 733 milhões de pessoas, isso não é só um pesadelo, é o dia a dia. Gente igualzinha a mim, igualzinha a você. Criança indo pra aula sem nem um gole de café, mãe dividindo migalha entre os filhos, idoso esperando sabe-se lá quanto pela próxima marmita. Pensa: uma em cada 11 pessoas tá aí, lutando todo santo dia contra o estômago vazio.

E detalhe: o planeta tem comida de sobra, viu? Só que preferem jogar fora do que dividir. Comida virou negócio, não virou direito de ninguém.

Aliás, praticamente tudo virou negócio na atualidade. Jesus disse que não era possível adorar dois senhores, a Deus e ao dinheiro. Pelo visto o Pix já se tornou mais importante do que o Sermão da Montanha.

Em 2023, 2,3 bilhões (é coisa pra caramba!) viveram sem saber se iam comer amanhã, ou até mesmo mais tarde. Você já passou por isso!? Consegue ter empatia e identificação com a dor e sofrimento de quem vive assim neste momento!?

Fome tem um monte de origem, mas desculpa? Zero. Nada justifica, que não seja o egoísmo exacerbado, a ambição desenfreada e o gozo pelo status e poder, tudo que corrompe a alma humana. Você tem mais do que precisa, enquanto conhece alguém que falta o mínimo para viver com dignidade!?

Ela aparece onde guerra destrói tudo, expulsa quem não tem culpa. Cresce quando chove demais ou de menos, quando o pouco que tinha vai embora. É regada pela pobreza, pela desigualdade que transforma sorte em sentença, por um sistema que só faz subir preço enquanto o prato esvazia. 

E falar em guerra é bizarro, estupido, insano, ver torcida organizada para um lado ou outro, por crenças e fanatismo, enquanto são dilaceradas e morrem pessoas, entre elas, idosos e crianças. E se fosse seu pai, mãe ou filho!?

Crueldade pura, porque é silenciosa. Não faz escândalo, mas vai minando o corpo, o humor, o crescimento, até o sonho. E pior: dava pra evitar. Já existe tecnologia, comida, dinheiro. Só falta vergonha na cara, vontade política e um pingo de empatia humanitária de cada um de nós, principalmente daqueles que patrocinam a desigualdade e os conflitos.

Sabe qual o problema? A gente finge que não vê. "Ah, é problema lá do outro lado do mundo." Não é. Fome é o espelho da nossa escolha de ignorar. E às vezes está na casa de um vizinho ou de um próprio familiar. Só que dá o dízimo. Quanta hipocrisia!

Quem tem fome não pode esperar. Quem sente fome nem vive direito, só sobrevive ou simplesmente morre.

Enquanto uns tão contando calorias para sua dieta, alguns sacas de soja para exportação, muitos estão contando os grãos de arroz que vão comer. Tem criança que só conhece fruta por desenho animado, acredita? Isso não é normal. Não pode ser. 

Cada prato vazio é um grito abafado pelo barulho da nossa distração — e pelo nosso costume de não ouvir o silêncio das injustiças.

Se é pra falar de futuro decente, começa botando comida na mesa de todo mundo. Isso é dignidade. Isso é o mínimo de humanidade. Diferente disso, é tudo conversa fiada e a continuidade e reprodução da ignorância e da maldade.

A real é: a fome só existe porque a gente deixa. Enquanto tiver gente passando fome, ninguém tá bem de verdade. Tá todo mundo com fome e sede de justiça.

Paulo Lemos é advogado especialista em Direito Público-administrativo e Eleitoral, entre outros, também defensor de direitos humanos e educador popular de cidadania