Muita gente ainda confunde Contabilidade com escrituração contábil. Nada mais equivocado. A Contabilidade é uma ciência que, ao longo dos séculos, evoluiu junto com o desenvolvimento econômico e tecnológico, especialmente do mercado de capitais e dos modelos de negócios.
Ela não se resume a fazer lançamentos e elaborar relatórios contábeis. A Contabilidade moderna abrange, no mínimo, quatro funções fundamentais: a escrituração, sim, mas também as demonstrações contábeis, a auditoria e a análise de balanços (Cunha, 2018). São funções que se complementam.
Enquanto a escrituração registra os fatos, as demonstrações organizam e sintetizam os registros para permitir a avaliação da situação econômica e financeira da organização, a auditoria examina sua confiabilidade e conformidade e a análise fornece informações econômicas-financeiras para apoiar a tomada de decisões estratégicas.
Além dessas funções básicas, a mensuração e avaliação, planejamento, orçamento, gestão e planejamento tributário, gestão de custos, controle interno contábil, prevenção e detecção de fraudes e irregularidades etc., são funções da Contabilidade, estudadas e/ou exercidas geralmente como funções da Controladoria (Borinellli, 2006; Lunkes et al., 2011; 2013), uma especialização da Contabilidade ou Contabilidade de Gestão.
É por isso que soa tão reducionista a forma como a Emenda Constitucional nº 109, de 2023, à Constituição do Estado de Mato Grosso, tratou a contabilidade nos artigos 56-A e 206-A. É verdade que o texto avança ao reconhecer que “as atividades de contabilidade são essenciais à gestão orçamentária, financeira e patrimonial da Administração Pública” (Mato Grosso, 2023, grifei). Mas, o texto o seguinte, que deveria ser um avanço na estrutura conceitual resumiu-se a procedimentos.
Isso porque, o texto da proposta original apresentada em 2022 a um grupo de contadores públicos – representantes do CRC/MT – o campo de atuação da Contabilidade era muito mais amplo. Ela destacava o papel da Contabilidade não apenas para registrar, mas também para promover a transparência, a prestação de contas e a fiscalização da gestão fiscal e das contas públicas. Ou seja, reforçava o papel estratégico do contador público na governança pública.
Já o texto aprovado em 2023, além de ser prolixo e conter falhas de técnica legislativa, a parte central dos artigos 56-A e 206-A se prendeu a uma visão procedimental. Em vez de ampliar o campo de atuação da Ciência Contábil no setor público, restringiu-a à centralização de registros e à produção de relatórios fiscais. Resultado: um texto sem avanços significativos, que resume as relevantes funções da Contabilidade à escrituração e à produção de relatórios.
Essa visão míope é perigosa. A Contabilidade, como ciência e política (legislação), vai muito além disso. Ela garante que a sociedade tenha clareza sobre onde e como o dinheiro público é aplicado, possibilita o controle do patrimônio e dá suporte às decisões que impactam a vida da população. A própria Lei de Responsabilidade Fiscal e o Decreto nº 10.540/2020 sinaliza que a contabilidade é instrumento de transparência da gestão fiscal, prestação de contas e responsabilização e apoio à tomada de decisão.
Contudo, a primeira parte daqueles dispositivos constitucionais tem o condão de vincular os Poderes Legislativos e Executivos quanto a necessária atuação do contador público nas atividades e sistemas de planejamento/orçamento e de administração financeira do Estado e dos municípios mato-grossenses. Sendo assim, o projeto de lei estadual que vier a organizar esses sistemas dever conter dispositivos que assegure a atuação dos profissionais da contabilidade nesses sistemas.
Se o texto constitucional não reflete integralmente essa visão, cabe aos profissionais, entidades da classe contábil e os Conselhos de Fiscalização da Profissão Contábil, empreender esforços junto aos Parlamentos federal e estadual para corrigir esse rumo. É preciso lutar por uma legislação mais clara e efetiva, que valorize a Contabilidade no setor público e reconheça o papel estratégico do contador na governança do Estado e dos municípios mato-grossenses.
Por fim, Contabilidade não é, e nunca será, apenas escrituração. Ela é a linguagem das finanças públicas e a espinha dorsal do controle dos atos de gestão subjacentes, da transparência, da prestação de contas, da gestão fiscal responsável das instituições públicas. Sem dados e informações contábeis, não há governança, gestão e controles públicos eficazes.
Isaías Lopes da Cunha é doutorando e mestre em Ciências Contábeis e auditor substituto de conselheiro do TCE-MT