GABRIEL NOVIS NEVES

A xícara esquecida

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A xícara esquecida

Com o passar dos anos percebo minha entrega total às coisas simples da vida.

Em outros tempos não daria a mínima atenção a uma xícara esquecida sobre a mesa da cozinha.

Um objeto aparentemente banal, entretanto, pode ser o fio da memória: quem a deixou ali? Em que circunstância?. Que conversas se passaram em volta dela?.

A xícara quase sempre está cercada de pessoas.

Convidar alguém para um cafezinho em casa não lhe concede o direito de abandonar a xícara na mesa da cozinha.

Afinal, a cozinha é um lugar íntimo da casa.

Nas cafeterias as xícaras ficam sobre as mesas e logo são recolhidas pelos garçons.

Mas que tipo de conversa terá levado os protagonistas até a cozinha?.

A revelação de um segredo até então guardado?.

Seria algo importante, ou apenas mais uma fofoca social?.

Como médico, penso logo em uma confidência grave: a notícia de uma doença ou a confissão de uma paixão impossível.

Aquela xícara, esquecida, talvez guarde confidências de uma visita planejada.

Ao olhar para as coisas simples, percebo a grandeza que carregam —e a coloco no papel, para compartilhar.

Sei, pelas respostas que recebo, que há quem se interesse por esses detalhes aparentemente pequenos.

Os poetas e pensadores sempre estiveram atentos às miudezas da vida, transformando-as em arte.

Tom e Vinícius de Morais são exemplos luminosos.

Quem daria importância à garota que simplesmente ia à praia de Ipanema?.

Eles a transformaram em poesia e música de alcance mundial.

Desde então, a ‘Garota de Ipanema’ passou a ser símbolo da adolescente carioca caminhando rumo ao mar.

Todas, a partir de então, despertaram olhares atentos em seus passos.

O Corcovado é apenas um morro — menos para o poeta, que nele encontra uma beleza infinita.

É quando a balada, sinônimo de alegria, se converte pela mão do artista, em tristeza de rara beleza.

E cantamos emocionados a ‘Balada Triste’.

Assim também a xícara esquecida na cozinha, pode não passar de um detalhe banal —ou, quem sabe, o motivo para esta crônica nascer.

Gabriel Novis Neves é médico, ex-reitor da UFMT e ex-secretário de Estado