EDUARDO LEITE

A sombra de Caim sobre o Brasil

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A sombra de Caim sobre o Brasil

O ressentimento patrocinou a motivação de Caim em matar seu irmão. Claro que ele não custeou sozinho: a inveja, a ira e, sobretudo, o orgulho auxiliaram. Deus havia aceitado o sacrifício de fé de Abel — aquele que ofereceu o melhor de si — enquanto o de Caim, feito sem entrega verdadeira, não despertou a mesma atenção divina. No entanto, o episódio não começou como tragédia.

Antes de matar seu irmão, Deus ainda lhe dirige a palavra, com uma advertência:“Por que estás irado? E por que descaiu o teu rosto? Se procederes bem, não é certo que serás aceito? Se, todavia, procederes mal, eis que o pecado jaz à porta; o seu desejo será contra ti, mas a ti cumpre dominá-lo.” (Gn 4.6–7).

Não era uma competição sobre quem oferecia o melhor sacrifício. Não havia platéia, curtidas ou câmeras. Ainda assim, Caim se deixou consumir por algo que nos é tragicamente familiar: a dor de não ser aceito, a sensação amarga da rejeição, a experiência comum da derrota.

O cenário era litúrgico, um ritual sagrado, mas o que se revelou ali foi a natureza humana em ebulição. O autor sagrado registra com precisão o instante em que o desejo de vingança, inflamado pelo orgulho ferido, torna-se quase impossível de conter.

Essaface do desejo, que a história passaria a narrar como perigoso e incontrolável, tem um nome: ressentimento. Este surge no seio dos afetos como uma argamassa invisível, colando orgulho, inveja e frustração — e projetando tudo isso sobre um culpado externo. Desde então, ele marca a experiência humana.

Não é apenas inveja de não ter o que o outro tem, mas o desejo devorador de vê-lo pagando por nosso fracasso.Não é a dor de não ser admirado, mas o impulso de responsabilizar o outro por isso. Ele “espreita entre a retina e a córnea” — contaminando a forma como vemos o mundo. É o sentimento mais primitivo que o ego alimenta quando não consegue lidar com a própria queda.

Friedrich Nietzsche (1844–1900) alertou para esse fenômeno, descrevendo o ressentimento como a arma dos fracos — aqueles que, impotentes para agir, invertem os valores da realidade para justificar sua dor.

Já Max Scheler (1874–1928) o definiu como uma deformação moral profunda, um veneno da alma que nos impede de ver o bem no outro, transformando todo juízo ético em mecanismo de autodefesa emocional. A pergunta inevitável é: será que tudo isso nos diz algo sobre a política no Brasil contemporâneo?

Em 2026, mais de 150 milhões de brasileiros irão às urnas para escolher seus representantes — deputado federal, estadual, dois senadores, governador e presidente da República — distribuídos em mais de 30 partidos (até o momento). Mas a disputa já começou — e, à primeira vista, parece seguir mais a ótica de Caim do que a leitura de Abel. Agora sim, é uma competição. E é nesse palco — feito de holofotes, bolhas digitais e egos inflados — que o ressentimento segue ditando muitas atuações.

Políticos e eleitores têm explorado o ressentimento como motor emocional que os impulsiona a agir nesse território. Alimentam inimigos imaginários, revanchismos históricos, humilhações sociais mal curadas. O discurso deixa de ser propositivo e se torna punitivo. Em vez de sonhar um Brasil possível, o eleitor deseja apenas ver o “outro lado” derrotado, humilhado, cancelado. Em vez de construir pontes, queremos dinamitar as travessias. Em vez de disputar ideias, buscamos o simples — é sempre perigoso — sabor da revanche.

Em sua forma mais extrema, a lógica de Caim encontra paralelos inquietantes na política contemporânea. Guardadas as devidas proporções, vale lembrar o caso ocorrido em 2024, na cidade do Crato, interior do Ceará. Na ocasião, o candidato “Dedé Eletricista” (PL) foi condenado pela morte do pai de seu adversário político, Clawdemy Nascimento, da Democracia Cristã (DC), assassinado a tiros.

O ressentimento é, quase sempre, uma recusa à transformação interior — e isso se tornou um dos maiores dilemas morais da sociedade contemporânea. Miroslav Volf, em O Custo da Ambição (2025), sugere que tal problema está no estômago da luta obsessiva pela superação do outro como um fim em si mesmo. Em certa altura da luta, torna-se mais fácil destruir o outro do que encarar a tarefa árdua de mudar a si mesmo.Nessa corrida eleitoral, as virtudes costumam ser encurraladas pelos vícios e desvios morais. É nesse ambiente viciado que emergem candidatos e eleitores igualmente tomados por um afeto corrosivo: o ressentimento.

Os primeiros buscam o poder ora movidos por revanchismo, ora por uma obsessão narcisista com a própria superação. Os segundos, feridos por derrotas anteriores ou desgostosos com a situação presente, desejam apenas dar o troco. E quando ambos operam nesse estado emocional, o projeto coletivo se desfaz. O problema, para todos, continua sendo sempre o outro — e quase nunca nós mesmos.

Isso nos leva à pergunta mais importante para 2026: com que espírito vamos votar? Com sede de vingança ou com desejo de reconstrução? Com ânsia por revanche ou com coragem de começar de novo?E com que espírito iremos nos candidatar?. Será para corrigir injustiças ou para alimentar vaidades? Para servir à sociedade ou para se vingar da história?. O “altar” da política exige sacrifícios — mas jamais o sangue do outro.

Não sejamos ingênuos: se Caim não tinha uma competição, nós temos — e das grandes. Temos plateia, curtidas, câmeras e algoritmos sedentos por conflito.

Cabe a nós o controle do ressentimento e de seus auxiliares. O espaço público precisa ser atravessado por uma ética que cultive virtudes capazes de vencer o ressentimento — que atente para o que Deus disse a Caim: “o pecado está à porta, mas cumpre a ti dominá-lo” — a fim de que possamos promover as verdadeiras mudanças de que precisamos.

Caso contrário, continuaremos a matar nossos irmãos — não com pedras, mas com posts, lacrações, omissões e irresponsabilidades.

Dr. Eduardo Leite – Historiador, Teólogo e Escritor