TALITHA LIMA E JOSÉ DE MELO

A reforma tributária, o produtor rural e o capítulo VII da Lei Complementar

· 6 minutos de leitura
A reforma tributária, o produtor rural e o capítulo VII da Lei Complementar

A Lei Complementar nº 214, de 16 de janeiro de 2025, foi promulgada com o objetivo de simplificar e modernizar o sistema tributário brasileiro, especialmente no que se refere à tributação sobre o consumo.

A nova legislação institui um sistema dual de Imposto sobre Valor Agregado (IVA), composto pela Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), de competência federal, e pelo Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), de competência compartilhada entre estados, Distrito Federal e municípios.

A reforma estabelece a extinção de tributos como ICMS, ISS, IPI (em partes), PIS e COFINS, além de promover ajustes na tributação sobre o patrimônio.

A nova sistemática introduzida pela reforma tributária representa profundas mudanças no modelo de tributação sobre o consumo, ao incorporar conceitos essenciais como:

·         Tributação no destino, ou seja, no local em que os bens e serviços são efetivamente consumidos;

·         Base ampla de incidência, abrangendo praticamente todas as operações com bens e serviços;

·         Base ampla de crédito, permitindo a apropriação de créditos ao longo da cadeia produtiva;

·         Neutralidade fiscal, buscando reduzir distorções econômicas;

·         Competência compartilhada na arrecadação do IBS, entre entes federativos.

Um dos principais dispositivos da nova reforma tributária é o artigo 4º da Lei Complementar nº 214/2025, que determina que tanto o IBS quanto a CBS incidem sobre operações onerosas envolvendo bens e serviços, ou seja, aquelas em que existe contraprestação pelo fornecimento. O dispositivo também prevê que determinadas operações não onerosas poderão ser tributadas, desde que estejam expressamente previstas na legislação.

O parágrafo segundo especifica que se considera operação onerosa qualquer fornecimento que envolva pagamento, troca ou qualquer forma de retribuição, abrangendo situações como compra e venda, permuta, dação em pagamento, locação, licenciamento, concessão, cessão, mútuo com cobrança de encargos, doação que beneficie o doador, constituição onerosa de direitos reais, arrendamento (inclusive mercantil) e prestação de serviços em geral.

Com isso, o dispositivo amplia de forma significativa a base de incidência do novo sistema tributário, buscando reduzir brechas, evitar planejamento abusivo e assegurar que todas as formas relevantes de circulação econômica sejam alcançadas pela tributação sobre o consumo.

Essa ampliação da base de cálculo da tributação sobre o consumo foi de vital importância para incluir o produtor rural no regime regular de apuração do IBS e da CBS, uma vez que esse segmento realiza de forma habitual operações onerosas, conforme previsto no artigo mencionado.

No modelo vigente antes da reforma tributária, o produtor rural pessoa física, ao comercializar sua produção, está sujeito principalmente ao ICMS e ao PIS/COFINS, tributos que incidem sobre o consumo e a circulação de mercadorias.

O ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços) é de competência estadual e incide sobre a saída da produção agropecuária. Em muitos estados, existem regimes especiais que concedem isenção, redução de base de cálculo ou diferimento do imposto nas operações internas e interestaduais realizadas por produtores rurais.

De modo geral, o ICMS sobre produtos agropecuários costuma ser recolhido na etapa subsequente da cadeia produtiva, por meio do diferimento, que transfere a responsabilidade do pagamento para o adquirente (indústria, cooperativa ou atacadista). Assim, na maior parte dos casos, o produtor rural pessoa física não recolhe diretamente o ICMS sobre suas vendas.

Ainda assim, mesmo não sendo responsável pelo recolhimento direto, o produtor rural pessoa física é obrigado a cumprir obrigações acessórias, em especial a entrega da Escrituração Fiscal Digital – EFD ICMS/IPI, na qual informa mensalmente suas operações, saídas, estoques e eventuais créditos e débitos do imposto.

Em relação ao PIS e à COFINS, o produtor rural pessoa física não é contribuinte direto das contribuições na venda dos produtos agropecuários. A tributação ocorre na etapa seguinte da cadeia, sendo o adquirente pessoa jurídica o responsável pelo recolhimento das contribuições, com base no regime cumulativo ou não cumulativo.

Percebe-se que o regime atual de tributação indireta sobre o consumo caracteriza-se por uma baixa incidência de recolhimento direto pelo produtor rural pessoa física, mas com a manutenção de obrigações acessórias relevantes, como a escrituração fiscal digital, e pelo deslocamento do ônus tributário ao comprador.

A Lei Complementar nº 214/2025 estabelece regras específicas para o enquadramento do produtor rural, pessoa física ou jurídica, no novo regime do IBS e da CBS. Conforme o artigo 164, produtores rurais que tiverem receita anual inferior a R$ 3.600.000,00 não serão considerados contribuintes desses tributos. Essa regra também se aplica ao produtor rural integrado.

Aqui cabe uma breve explicação, o produtor rural integrado é aquele que se vincula a uma empresa chamada integrador (normalmente frigoríficos, cooperativas, indústrias de alimentos ou agroindústrias) por meio de um contrato de integração vertical, pelo qual recebe insumos, orientações técnicas e apoio logístico para produzir bens destinados exclusivamente ao integrador.

Nesse modelo, o produtor rural atua como executor de parte do ciclo produtivo, enquanto o integrador coordena e detém o controle da cadeia, definindo padrões de qualidade, fornecendo materiais e adquirindo toda a produção. Um exemplo clássico de integração ocorre na avicultura, em que uma indústria frigorífica fornece ao produtor rural os pintinhos, a ração, as vacinas e a assistência técnica necessária.

O produtor, por sua vez, cria os animais em sua propriedade, seguindo rigorosamente os padrões de manejo e qualidade definidos pelo integrador. Ao final do ciclo de engorda, a indústria recolhe os frangos e paga ao produtor uma remuneração contratual, que não corresponde a uma venda autônoma dos animais, mas sim a um pagamento calculado com base na produtividade, na qualidade da produção e nos custos estabelecidos em contrato.

Caso o limite de receita seja ultrapassado no decorrer do ano, o produtor passará a ser contribuinte a partir do segundo mês subsequente ao excesso, salvo se o faturamento adicional não superar 20% do teto anual, hipótese em que os efeitos ocorrerão apenas no ano seguinte. No início de atividade, o limite é proporcional aos meses de operação. Além disso, se o produtor rural pessoa física ou jurídica tiver participação em outras empresas do setor agropecuário, as receitas serão somadas para verificação do limite.

O artigo 165 autoriza o produtor rural ou o produtor rural integrado a optar voluntariamente, a qualquer momento, pelo regime regular de apuração e recolhimento do IBS e da CBS. Essa opção produz efeitos a partir do mês seguinte ao pedido e é irretratável durante todo o ano-calendário, estendendo-se automaticamente aos anos seguintes, salvo renúncia formal. A renúncia está prevista no artigo 166, sendo válida a partir do primeiro dia do ano seguinte à solicitação, caso observados os requisitos regulamentares.

O artigo 167 determina que o limite de receita de R$ 3.600.000,00 será corrigido anualmente pelo IPCA, preservando seu valor real ao longo do tempo.

Por fim, o artigo 168 cria o mecanismo de crédito presumido de IBS e CBS, permitindo que empresas adquirentes de bens e serviços de produtores rurais não contribuintes possam apropriar créditos sobre essas operações.

O valor do crédito presumido será calculado com base em percentuais que serão definidos anualmente pelo Ministério da Fazenda e pelo Comitê Gestor do IBS. O documento fiscal eletrônico deverá discriminar o valor da operação, o valor do crédito presumido e o valor líquido da operação.

Esses créditos poderão ser usados para abatimento do imposto devido ou para ressarcimento, conforme regras gerais. Ainda, sociedades cooperativas também poderão se beneficiar do crédito presumido em relação às aquisições feitas de associados não contribuintes, com exceção de situações em que os produtos retornem ao produtor após beneficiamento.

Diante das mudanças profundas introduzidas pela reforma tributária, é essencial que o produtor rural conte com orientação técnica e acompanhamento especializado para compreender o novo regime do IBS e da CBS, avaliar os impactos econômicos sobre os produtos que comercializa e planejar a tributação de forma eficiente.

Além disso, é fundamental que o produtor analise cuidadosamente os regimes diferenciados e os benefícios fiscais previstos na legislação, como a desoneração de itens da cesta básica, a tributação favorecida sobre insumos agrícolas e a aquisição de máquinas e equipamentos utilizados na atividade rural. O suporte profissional adequado será decisivo para evitar erros na transição, aproveitar corretamente os incentivos disponíveis e garantir a regularidade fiscal frente ao novo sistema.

*Talitha Laila Ribeiro Lima - Conselheira Estadual da OAB-MT (2025-2027). Membro Conselheiro da Comissão Especial de Direito Tributário da OAB-MT.É advogada especialista em direito tributário, com 15 anos de atuação ativa na Gestão de Passivo Tributário. Sócia fundadora do escritório Almeida Lima Advocacia. Bacharel em Direito pela Universidade de Cuiabá em 2010. Master of Laws - LLM, Direito e Processo Tributário pela Fundação Escola Superior do Ministério Público. Pós-graduanda Lato Sensu pelo IBET - Instituto Brasileiro de Estudos Tributários - São Paulo SP

*José Augusto de Melo de Carvalho - Advogado e Contador • Graduado Ciências Contábeis na Faculdade Trevisan Escola de Negócios • Graduado em Direito– Universidade Estadual Paulista (UNESP) • MBA em Gestão Tributária pela USP/ESALQ • Pós-graduado em Direito Tributário pela PUC-MG • Pós graduado em Advanced Topics in Financial Decisions and Corporate Policy pela University of La Verne na Califórnia