A varanda das casas antigas de Cuiabá era um palco de observação: dali se via o nascer do sol, o vai e vem das pessoas, o som distante das conversas.
Penso em como a paisagem muda, mas certos ruídos e cheiros permanecem.
O nascer do sol era de todos, numa cidade, sem os espigões de concreto, que depois surgiram e roubaram dos moradores a beleza do despertar do dia.
Das varandas assistia-se ao movimento das pessoas, antes da invasão dos automóveis e motocicletas, com sua poluição e pressa.
Também as conversas distantes se apagaram com o tempo.
Assim era a cidade quando nasci e cresci — uma cidade que só aprendi a compreender anos mais tarde.
O chamado ‘progresso’ nos sonegou um dos espetáculos mais lindos da natureza: o sol nascendo e clareando o dia, visto das varandas de nossas casas.
À tarde, o pôr do sol nos brindava com cores e despedidas, deixando um rastro de tristeza, com a promessa de um ‘até amanhã’.
O silêncio tomava conta da cidade, percebido da varanda, sem o burburinho das vozes distantes.
Íamos dormir certos de que a cena se repetiria, sempre igual, sempre nova.
Aos poucos, quase sem percebemos, tudo se alterou.
A paisagem mudou, mas alguns ruídos e cheiros ficaram gravados na memória.
Às vezes chego a duvidar que a cidade onde moro seja a mesma em que nasci, tamanha a distância entre lembrança e realidade.
Hoje, tudo é tão diferente!.
O ranger das rodas de madeira das carroças sobre os paralelepípedos foi substituído pelo deslizar dos pneus no asfalto.
O cheiro dos bolos de mamãe cedeu lugar ao odor da borracha queimada.
O som das conversas ao longe desapareceu, trocado pelas transmissões incessantes dos campeonatos de futebol, masculino e feminino.
A paisagem mudou: de Cidade Verde para Cuiabá Brasa.
Os ruídos e cheiros da minha infância sobrevivem apenas nos arrabaldes e às margens do rio Cuiabá.
Gabriel Novis Neves é médico, ex-reitor da UFMT e ex-secretário de Estado