Lembro bem. Foi há cerca de quarenta anos, em maio de 1985, no Rio de Janeiro.
Na rua do Catete, que testemunhou tantos episódios da história brasileira, participei e discursei na inauguração de uma iniciativa destinada a revolucionar a educação pública brasileira: o CIEP Presidente Tancredo Neves.
Não se tratava apenas de mais um prédio escolar, mas do marco inicial dos Centros Integrados de Educação Pública — uma visão audaciosa idealizada por Leonel Brizola e desenvolvida por Darcy Ribeiro. Eles sonhavam com uma escola que fosse muito mais do que um espaço de ensino-aprendizagem: queriam um centro de cidadania em tempo integral, capaz de acolher, alimentar, educar e proteger a infância e a juventude, especialmente as mais vulneráveis.
A grandiosidade do projeto dos CIEPs residia em sua concepção holística. Não se tratava apenas de ampliar o número de horas na escola, mas de oferecer uma educação verdadeiramente integral, que contemplasse desde alimentação nutritiva e acompanhamento de saúde, inclusive dental, até atividades culturais, esportivas e de reforço escolar.
O objetivo era claro: romper o ciclo de exclusão social ao proporcionar um ambiente seguro e estimulante, onde cada criança pudesse desenvolver todo o seu potencial. Os prédios, com seu design arrojado e inovador, assinados por Oscar Niemeyer, simbolizavam a crença de que a arquitetura escolar deve refletir a importância do que nela se realiza — um convite à dignidade e à inovação. Toda nova escola já nascia com biblioteca e quadra poliesportiva coberta. Quando o terreno permitia, com piscinas semiolímpicas.
Lembro-me da esperança que o projeto despertou. Era a promessa de um futuro em que a qualidade da educação não fosse privilégio, mas um direito acessível a todos, independentemente da classe social. Os CIEPs representavam um compromisso com a equidade, um modelo que, se replicado em escala nacional, teria o poder de transformar o destino de milhões de brasileiros.
Contudo, como sabemos, a história nem sempre segue um curso linear de evolução civilizatória. A magnitude e o potencial transformador dos CIEPs colidiram com uma oposição tacanha e míope, que ecoava argumentos rasos e desqualificadores.
De setores da direita conservadora, que viam no projeto um gasto excessivo, a parcelas da própria esquerda, que — incrivelmente — criticavam a proposta com chavões como "escola não é refeitório", prevaleceu o discurso da desinformação e da minimização.
Ignoravam — propositalmente ou por falta de compreensão — que alimentação e acolhimento eram partes indissociáveis de uma estratégia maior para manter crianças fora das ruas, protegidas da violência e com plenas condições de aprendizagem. O modelo então prevalecente, de até três turnos escolares de quatro horas cada, ignorava a realidade de que a maioria das mães precisava trabalhar e suas crianças permaneciam sem nenhuma assistência ou acompanhamento.
Essa visão estreita e preconceituosa, que reduzia a complexidade do projeto a um simplório “local de comer” ou “outdoor em beira de estrada”, foi crucial para o seu desvirtuamento e posterior abandono.
Os CIEPs, que deveriam ter se multiplicado por todo o país, foram paulatinamente abandonados pelos governos sucessores, sofrendo com o desinvestimento, a falta de manutenção e a descaracterização de seu modelo pedagógico. Muitos se transformaram em meros prédios escolares de turno parcial, distantes do sonho original.
O prejuízo para a educação brasileira é imensurável. Perdemos a oportunidade de construir uma rede de ensino público de qualidade, verdadeiramente inclusiva e integral, que poderia ter mitigado as profundas desigualdades sociais do nosso país. A lógica do “custo” se sobrepôs ao valor do investimento no capital humano e social.
Quatro décadas depois, a visão revolucionária dos CIEPs ressoa mais forte do que nunca. Ela nos lembra que a educação pública de qualidade e em tempo integral não é um luxo, mas uma necessidade urgente. E que, para alcançá-la, precisamos não apenas de coragem para sonhar alto, mas também de discernimento para combater as vozes pequenas e os argumentos rasos que, por miopia ou má-fé, insistem em frear o progresso do Brasil. Essa luta continua.
Luiz Henrique Lima é professor e conselheiro independente certificado